LEMBRANÇAS RELEGADAS E UM BAÚ A SETE CHAVES:
COMO LIDAR COM MEMÓRIAS DIFÍCEIS ATRAVÉS DA ESCRITA EXPRESSIVA
Já experimentou relembrar um assunto guardado a sete chaves? Esse episódio foi tão emocionalmente intenso que parece adormecido? Mesmo assim, vez ou outra, de repente uma lembrança vem à tona como um flash de alta velocidade, fugaz e fosco, mas, fortemente incômodo?
Se teve o ímpeto de algum dia reviver essas memórias, deve ter sentido emoções e pensamentos como um redemoinho e, a depender de como essas lembranças foram evocadas, talvez não tenha dado conta de lidar com o desconforto e, novamente, as deixado de lado. Esse mal-estar é uma reação natural que acontece quando verbalizamos - ou pomos em palavras - eventos emocionalmente significativos. Ao mesmo tempo, é um sinal de que o trabalho de evocar emoções e pensamentos se inicia.
Décadas de estudos em psicologia e neurociência, como os conduzidos por James Pennebaker e colaboradores, têm apontado que manter para si uma história dolorosa ou um excesso de reserva pode ser tão prejudicial à saúde quanto falar desses assuntos vez ou outra sem recorrer a formas de criar conexões e entender nossas reações diante dessas vivências. Não basta trazer à consciência aquilo que nos magoou ou surpreendeu. É preciso dar sentido a essas experiências.
Desabafar nem sempre é fácil ou mesmo uma opção. Talvez nem sequer compreendamos a necessidade de fazê-lo. Por que, afinal de contas, que mal pode haver em não compartilhar ou verbalizar o que aconteceu?
O que não notamos é que um silencioso, mas grande esforço é empregado quando retemos informações. Quando escondemos, negamos ou evitamos lembrar algo que se passou conosco, nosso corpo reage. Isso exige um grande emprego de energia para permanecer calado. Esse elevado nível de tensão pode causar a disrupção do funcionamento normal do organismo, provocando alterações como aumento dos batimentos cardíacos, sudorese excessiva, tensão muscular e liberação de hormônios do estresse.
A curto prazo, talvez percebamos os impactos desses efeitos em um momento ou outro - isso pode nos tirar o sono ou nos fazer agir de maneira pouco produtiva, tornando-nos mais dispersos ou mais agitados. Mas, com o tempo, a frequência e a manutenção desses sintomas podem causar danos mais duradouros à nossa saúde.
Uma ou outra noite mal dormida parece remediável, mas a continuidade de um padrão de sono ruim traz consequências sérias: enfraquecimento do sistema imunológico, dificuldade na cicatrização de feridas, comprometimento da regeneração muscular, alterações na pressão arterial e maior instabilidade emocional.
Em última análise, reviver e falar do passado pode ser benéfico quando avaliamos os fatos de uma nova perspectiva, encontrando explicações e buscando interromper o ciclo repetitivo de pensamentos e emoções ao redor de um evento traumático. Não se trata de perdoar ou conviver melhor com o quê ou quem nos fez mal, mas de alcançar um estado de espírito mais tranquilo ou de maior paz interior. No entanto, surge o receio: falar para quem?
Muito é repetido que “todos deveríamos fazer terapia ao menos uma vez na vida” ou “sem um acompanhamento psicológico, o trabalho será incompleto”, assim como “falar sobre isso com alguém te fará bem”. Em contrapartida, do lado oposto, existem afirmações completamente contrárias - “ir ao psicólogo é coisa de louco”, “terapia é falta de Deus” e coisas do tipo. Talvez, se chegássemos a um meio-termo, sem generalizar ou negar a necessidade de tratamento convencional, vislumbraríamos novas possibilidades para lidar com a sobrecarga emocional.
O problema, muitas vezes, reside em querer respostas prontas para tudo e não perceber outras possibilidades. Nesse contexto, cabe perguntar: e se não nos sentimos confortáveis em falar com alguém sobre nossa vida íntima? E se não temos a possibilidade de recorrer à ajuda profissional naquele momento?
Quando não podemos ou não queremos falar com alguém - seja por vergonha, medo, falta de tempo ou recursos - precisamos buscar alternativas, pois assim como não existe uma solução universal para cada dilema, também a terapia não é a saída para toda a forma de expressão emocional. Recorrer à escrita expressiva, nesse caso, é um modo mais discreto e simples de exteriorizar nossa intimidade.
Essa forma de escrita - feita de modo espontâneo - passou a ser alvo de pesquisas científicas na década de 1980. Esses estudos começaram a ser conduzidos dentro de um modelo de 3 a 5 sessões com duração média de 15 a 20 minutos, nas quais os participantes eram orientados a escrever livremente sobre vivências marcadas por forte carga afetiva, onde poderiam descrever esses fatos, assim como expressar sentimentos e considerações pessoais relacionados.
A tarefa de escrita acontece então como um fluxo de pensamentos emaranhados, que, inicialmente, não têm uma ordem clara, não assumem uma forma definida e talvez pareçam confusos - mais sensação do que verbo. Essa é uma experiência anterior às palavras, ou seja, algo sentido antes de ser nomeado.
Ao longo da sessão ou de sessões subsequentes, o discurso começa a ganhar sequência e estrutura lógica, tornando possível identificar e rotular os acontecimentos. As sensações e sentimentos que afloraram no início podem ser reconhecidos e conectados, assumindo uma forma mais organizada e compreensível. Aos poucos, o discurso finalmente se estabelece com uma ordem coerente, alinhada ao que somos e ao que acreditamos.
Essa clareza adquirida no discorrer do texto traria dois importantes benefícios para a nossa saúde:
-> Identificação das circunstâncias causadoras de estresse. Se identificássemos que na origem das doenças estão associados fatores emocionais, reduziríamos o esforço inconsciente empregado na contenção dessas questões subjacentes. Isso liberaria nosso organismo para trabalhar de forma mais funcional, reduzindo sentimentos de ansiedade e tensão, produzindo assim grande alívio. A retirada dessa sobrecarga refletiria diretamente na nossa saúde física.
-> Sensação de controle e previsibilidade. Identificar o que pode estar por trás dos nossos problemas de saúde ou desgaste emocional promove maior sensação de controle e previsibilidade, nos sentimos mais tranquilos quando sabemos o quê, como e quando fomos, somos ou podemos ser afetados por determinadas circunstâncias.
Ainda não há um consenso de como os benefícios da escrita operam, mas algumas teorias foram desenvolvidas na tentativa de elucidar seus mecanismos. Recorrerei a algumas analogias para ilustrar os quatro principais pressupostos, descritos a seguir:
Teoria da Desinibição Emocional:
Imagina que, num dia desses, sentíssemos o corpo todo a tremer, sem entender por quê. Ao começar a escrever, é como se uma descarga de tensão fosse ocorrendo aos poucos até que o corpo começasse a arrefecer.
Nessa metáfora vemos como a escrita atua como um veículo para extravasar emoções reprimidas, permitindo uma sensação de grande liberação de estresse e um sentimento geral de bem-estar.
Teoria da Exposição:
Ao nos atrevermos a enfrentar um medo encarando-o de frente, sentimos nosso corpo tenso em estado de alerta. Essa rigidez passa a ser suavizada no desenrolar da escrita ao ousarmos discorrer sobre um tema perturbador. A cada palavra é como se estivéssemos retirando um véu da camada de medo e, ao espreitá-lo cada vez mais nitidamente, ele vai se desvanecendo pouco a pouco.
É justamente nesse ponto que a escrita mostra sua função: escrever francamente e de forma repetida sobre eventos marcantes é como essa retirada de véus, porque proporciona uma dessensibilização, e o impacto das lembranças que causam mal-estar tende a suavizar. Isso funciona como uma exposição gradual, na qual, progressivamente, criamos resistência aos seus efeitos deletérios.
Teoria do Processamento Cognitivo e Emocional:
Com o tempo, nossos pensamentos aleatórios, disparados no papel e não mais na nossa mente, vão assumindo uma forma. Ainda que inicialmente não os interliguemos, frases soltas aos poucos se encaixam, transcrevendo sensações, medos e expectativas.
Desse modo, percebemos que: esse conteúdo, materializado em palavras, facilita um fluxo de ideias mais contínuo e pacífico.
Nesse cenário, a escrita permite recordar reminiscências e reunir narrativas dispersas em um todo mais coeso, dando início ao processo de identificar contextos e personagens, atribuindo ações e significados a cada um deles.
Gradualmente, ao arranjar os elementos e trechos da história em seu lugar, conseguimos compreender como isso nos afeta. A partir de então, podemos fazer escolhas mais conscientes: alterar o curso dos nossos pensamentos e reavaliar nossas ações.
Teoria da Autorregulação:
Consideremos um dia turbulento e cansativo, no qual nos sintamos esgotados. Deixamos de lado a nossa costumeira simpatia e passamos a nos comportar de forma hostil, nosso rosto fica tenso e cumprimentar as pessoas parece um fardo. É como se perdêssemos a capacidade de nos controlar ou regular e reagíssemos emocionalmente a tudo.
É aqui que entra o lugar da escrita: cabe a nós saber ajustar nossa conduta diante de emoções intensas ocasionadas por contrariedades ou contratempos - isso se trata de regular as emoções: encontrar o equilíbrio adequado para reagir diante de situações inesperadas e estressantes.
A escrita, nesse sentido, nos faz processar e ponderar informações e, ao analisá-las sob novas perspectivas, nos leva a identificar nosso modo de sentir e lidar com os obstáculos, o que nos torna mais conscientes das escolhas sobre como nos comportar em meio a fortes emoções.
Essas teorias resultam de centenas de investigações sobre a escrita expressiva e buscam explicar seus benefícios, nos ajudando a compreender melhor as razões por trás da necessidade de expressar nossos sentimentos.
Diante disso, fica claro que silenciar não significa passar despercebido - e a escrita expressiva pode ser a chave para abrir o baú com segurança.
Contrariar a crença de que “ninguém tem nada a ver com a nossa vida” e “quanto mais discreto formos, menos intromissão teremos nos nossos assuntos pessoais” nos permite ter em consideração outros pontos de vista, podendo nos levar a contestar nossas ações de forma positiva.
A bem da verdade, às vezes a gente sente vergonha - e não tem nada de errado nisso - ou simplesmente não achamos ninguém disponível e acolhedor naquele momento. Seja assim respeitada a sua decisão.
Lembre-se, no entanto, das consequências de reprimir seus sentimentos e os processos mentais a eles associados, tendo em conta o recurso à escrita expressiva para amenizar seus impactos na sua saúde e bem-estar.
P.S.: Se você quiser se aprofundar, indico alguns trabalhos que embasam esse texto: James Pennebaker e Joshua Smyth em “Opening Up by Writing It Down”, a meta-análise de Joanne Frattaroli (2006), e pesquisas de Lepore e colegas sobre escrita e autorregulação emocional. Também há estudos recentes em universidades portuguesas, como os de Azevedo (2018), Luísa (2020) e Melissa (2021).


