ESCRITA CRIATIVA
Quando nossa história ganha ares de romance
Acredito piamente que muitos autores, se não a maioria, no fundo, quando escrevem uma ficção - seja um drama, um thriller, um poema ou qualquer outro gênero literário - estão, no fundo, a falar de si mesmos ou da sua vaga experiência e perspectiva através dos vários elementos literários, como metáforas ou simbolismos.
E por isso é tão incrível. Deixar vir à tona a verdade trajada com figurinos exuberantes é como desfilar num baile de carnaval com uma fantasia carregada de revelações encenadas em poesias ou suspense. Nossa história ganha ares de romance e temos a sensação de controlar o enredo da nossa própria vida, e toda experiência de sofrimento parece deixar de ser em vão quando se torna uma obra de arte trabalhada com esmero e dedicação.
Vozes narrativas
Diferentemente da escrita expressiva, que segue o princípio da escrita livre, sem preocupações de ordem estética e em que prevalece o tom confessional e excusa-se de alinhar os pontos ou o contexto de forma coerente.
Na confecção de narrativas, principal gênero literário adotado na escrita criativa, a redação é mais atenta e rigorosa, pois segue um fio condutor que precisa fazer sentido para um leitor imaginário.
Numa história, usamos a terceira pessoa ou o eu ficcional: não sou eu quem diz, é ele. Essa é a maior liberdade experimentada, especialmente para os tímidos ou introvertidos - a de deixar escancarada uma verdade dissimulada. Ao narrar uma passagem da história - quer numa cena de ação, na formatação do contexto, nos sons evocados ou nas falas de um diálogo - pode-se estar, na verdade, a se referir a algo mais profundo e enigmático, carregado de revelações.
Cada uma dessas cenas, portanto, seja fantástica ou irrealista, traz consigo uma verdade liberada em descrições ou dizeres que transbordam significados para além das palavras. Uma história realmente autêntica, porque cada um de nós tem uma experiência única, não pelo que nos aconteceu, mas pela forma como lidamos com o que nos aconteceu.
"Em vez de serem os fantoches, eles se tornam os mestres de fantoches, puxando as cordas." (Deveney e Lawson)
Cinco importantes aspectos da escrita com arte
Distanciamento e Dar Forma: A escrita criativa permite expressar nossas emoções com ousadia, mas em segurança. Isso acontece quando nos distanciamos da nossa história pessoal com o intuito de fazê-la tomar forma. O foco é depositado na arte e em suas nuances, e não em fatos da realidade.
Gerenciamento Neutro de Emoções: O processo de distanciamento, que permite recriar temas de grande impacto, é o que oportuniza o embrenhar-se, com leveza, nas emoções. No papel de autor, gerenciamos, de forma mais neutra, sentimentos desconfortáveis, impondo um limite seguro entre aquilo que se escreve e aquilo que se sente.
Análise e Observação Detalhada: Escrever, nesse sentido, faz com que sejamos mais analíticos e observadores dos mínimos detalhes e nos leva a repassar as cenas cuidadosamente, porque precisamos nos fazer entender pelo leitor imaginário. Essa cautela nos permite olhar mais racionalmente para o passado.
Revisão criativa das perspectivas: Nessa criação e necessária revisão, entre a criatividade, a veracidade e o aspecto estético, passamos a avistar novas perspectivas e a compreender tudo de forma diferente. É o que os psicólogos chamam de flexibilidade cognitiva, isto é, ter a capacidade de encontrar outras possíveis explicações ou soluções para o que nos aconteceu.
Catarse e Redirecionamento: Outro importante aspecto surge com a catarse, ou seja, coloca-se para fora tudo o que antes demandava um certo esforço para não se deixar mostrar. Esse alívio gera um novo fôlego e redirecionamento. Voltamos, então, nossa atenção para o que agora realmente importa.
Escrever com arte demanda um certo trabalho porque requer que a nossa atenção esteja focada em manipular diferentes elementos (ritmo e sonoridade, personificação, metáforas etc.) e a ordem em que a história transcorre (cronológica, em flashbacks ou qualquer outra).
Nesse sentido, a escrita com arte exige grande cuidado estético, mas não se sobrepõe à liberdade de escrever livremente, pois as ideias devem surgir espontaneamente, ainda que, a seguir, seja preciso atentar à coerência que se impõe a elas.
A coerência se verifica no esmero em fazer finas observações, em associar palavras e ideias, nas formas alternativas de diálogos, em descrever em vez de dizer. Ela também se mostra em escolher com cuidado a melhor palavra, em exagerar nos detalhes, transformando coisas simples em algo extraordinário, e em usar analogias e metáforas ao seu critério.
"O processo de escrita, que exige do autor recorrer à experiência, à memória e à imaginação, pode desenvolver ativamente a capacidade de bricolagem." (King, Neilsen & White)
Portanto, escrever empregando arte para expressar as emoções é uma forma de bricolagem mental, em que emoções, ideias, imagens, pensamentos e memórias dispersas e aleatórias convergem, formando uma nova cena a partir desses fragmentos.
Reescrever nossa história, recorrendo a novos enredos, unindo fantasia e realidade, é uma corajosa forma de reflexão, nos fazendo repensar, supor soluções e redefinir caminhos.
E, como bem disseram Deveney e Lawson, passamos a controlar com maior acurácia ou precisão os rumos das nossas vidas, fazendo o que bem quisermos com aquilo que parecia ser o destino traçado.
Nos orientando assim por novos rumos, não mais determinados por um passado certo, mas recontados com liberdade poética ou cinematográfica.


